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O mergulho com o grande tubarão-branco

O mergulho com o grande tubarão-branco
Marcelo Szpilman
out. 23 - 10 min de leitura
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Acredito genuinamente que, para nós pesquisadores e divulgadores de ciência, não há melhor forma de aprimorar o reconhecimento visual das espécies de tubarão, desmitificar sua imagem deturpada e observar seu comportamento natural do que mergulhar com esses seres fantásticos. Não há experiência mais gratificante para quem trabalha com tubarões do que estar no mesmo ambiente desses belos e incríveis predadores.

Não foi por outra razão que, a partir de 2005, passei a mergulhar com diversas espécies de tubarão ao redor do mundo. Tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier) e serra-garoupa (Carcharhinus limbatus) na África do Sul, cabeça-chata (Carcharhinus leucas) em Moçambique, galha-prateada (Carcharhinus albimarginatus) e tubarão-das-Galápagos (Carcharhinus galapagensis) nas ilhas Revillagigedo, galha-branca-de-recife (Triaenodon obesus), lombo-preto (Carcharhinus falciformes) e tubarão-martelo (Sphyrna lewini) nas ilhas Galápagos. Mas faltava o grande tubarão-branco (Carcharodon carcharias) para completar a lista dos tubarões considerados “mais perigosos” (cabeça-chata, tubarão-tigre e tubarão-branco).

Em dezembro de 2010 surgiu a oportunidade de uma expedição à ilha de Guadalupe. Partimos para San Diego, cidade localizada na costa oeste dos Estados Unidos, próximo à fronteira com o México, onde tem início a Great White Shark Expedition.

Éramos vinte mergulhadores, sendo quinze brasileiros e cinco americanos (equipe da National Geographic Channel). No grupo, estavam três amigos: Gabriel Ganme, especialista em mergulho com tubarões, Marcelo Krause, um dos melhores fotógrafos submarinos do país, e Lawrence Wabba, famoso cinegrafista da vida selvagem. De San Diego, descemos de ônibus até Ensenada, no México, de onde sai o barco da operação de mergulho em direção à ilha de Guadalupe, ilha vulcânica distante 241 quilômetros da costa do México (quase 24 horas de navegação).

Existem três locais no mundo onde pode-se mergulhar com os grandes tubarões-brancos, com bom grau de certeza de encontrá-los. No sul da Austrália, na África do Sul (Cidade do Cabo) e na ilha de Guadalupe, no Pacífico. O que os três pontos têm em comum? Águas frias e grandes colônias de pinípedes, superfamília dos mamíferos marinhos que abrange os leões-marinhos, lobos-marinhos e elefantes-marinhos. Ou seja, uma farta e gordurosa despensa para os tubarões-brancos.

A ilha de Guadalupe, que serve de berçário para três populações específicas de pinípedes - o lobo-marinho-de-Guadalupe (Arctocephalus townstendi), o elefante-marinho-boreal (Mirounga angustrirostris) e o leão-marinho-da-Califórnia (Zalophus californianus) -, é considerada, por suas águas claras e população de tubarões com comportamento mais calmo, o melhor dos três locais citados para observação dos grandes brancos.

Ancoramos na ilha de Guadalupe às 7 horas da manhã e pouco depois já estávamos na reunião de mergulho no grande salão do barco para receber as orientações operacionais e de segurança. Os vinte mergulhadores foram divididos em dois grupos de rodízio e cada grupo distribuído nas três gaiolas. Duas posicionadas na popa da embarcação com a parte superior na superfície da água, para acomodar três mergulhadores em cada, e a terceira disposta na lateral, a quinze metros de profundidade, com capacidade para até quatro mergulhadores.

Eu estava no primeiro grupo e, logo após o briefing, nos equipamos e fomos para as gaiolas, já colocadas na água transparente. Passada quase meia hora, surgiu o primeiro tubarão-branco. Uma grande fêmea, ainda tímida. Demorou para se aproximar, mas acabou passando em frente às gaiolas para alegria de todos. Com uma hora de mergulho, uma plaqueta com os dizeres “UP” avisa que é preciso sair da gaiola para dar a vez ao outro grupo. Você sai, e pode ir ao banheiro, comer e beber algo, e uma hora depois volta com a troca de grupo. E vai assim, trocando de hora em hora, até o final do dia com o sol se pondo.

O segundo e o terceiro mergulhos daquele dia foram ainda melhores, com dois tubarões desfilando para a plateia extasiada. Como disse, já mergulhei com diversas espécies de tubarões e cansei de assistir os documentários com os grandes tubarões-brancos, porém vê-los ao vivo, com seu majestoso porte, se aproximando de você, com a composição visual do famoso triangulo formado pelas peitorais e pela dorsal, é impagável. O jeito imponente e calmo com que cruzam as águas azuis ao lado das gaiolas, o que permite ótimas fotos e filmagens, transmite uma clara sensação de que eles têm plena consciência de que são os reis do pedaço.

Ao longo do dia, foram três fêmeas e um macho desfilando seus enormes corpos, de quatro a cinco metros de comprimento. Foi um dia produtivo, cansativo e frio, mas extremamente gratificante. À noite, no jantar, a euforia e excitação eram o prato principal.

No segundo dia foram avistados seis indivíduos diferentes, sendo dois machos e quatro fêmeas. Uma delas enorme, com mais de cinco metros. Em alguns momentos, podíamos ver até três animais ao mesmo tempo nas águas à nossa frente.

O tubarão-branco é um predador habilidoso e furtivo, que caça com ritual e propósito. Normalmente solitários, podem juntar-se em breves agregações quando há fonte de alimento, no caso, os atuns jogados na água para atraí-los. Nessas ocasiões, estabelecem uma ordem hierárquica de alimentação na qual o tamanho determina a vez e os maiores comem primeiro.

Nesse dia tivemos a sorte de poder ver e acompanhar in loco o procedimento usual do leão-marinho quando está retornando de sua pescaria ao largo da ilha e percebe a presença do tubarão-branco. Ele fica com a cabeça dentro da água observando onde estão os tubarões e, quando um deles se aproxima, o leão-marinho, como se quisesse provocar, fica nadando ao redor do tubarão, a poucos metros de distância. Na verdade, ele está demonstrando ao predador que ele já foi percebido. Assim, o tubarão-branco, que é um especialista no ataque de emboscada e sabe que não consegue pegar a presa sem a surpresa a seu favor, desiste de tentar um ataque.

É interessante mencionar que quando alguns mergulhadores resolveram sair da gaiola, para ter novos ângulos de filmagem, os tubarões-brancos sumiram. E desapareceram por que passaram a não mais se sentir confortáveis naquela situação. Ou seja, sentiram medo e deixaram a área. E isso acontece, como ocorre nos safaris fotográficos na África, por que o animal vê a gaiola e os mergulhadores como uma coisa só, da qual já está acostumado, que não lhes representa ameaça. Mas basta que um mergulhador saia e se destaque para que o grande branco se sinta intimidado. Mais um fato que desmitifica a imagem do tubarão-branco como a fera assassina dos mares.

Outra observação relevante foi ver que os tubarões-brancos da área, já acostumados à mecânica da operação de mergulho, oferta de pedaços de atum jogados na água para atrai-los, não apresentavam o usual “fechamento dos olhos” na mordida para alimentação. Espécies de algumas ordens de tubarões possuem um tipo de pálpebra, chamada membrana nictitante, que é estendida por cima do olho ao mesmo tempo em que ele é virado para dentro. Esse mecanismo tem a função de dar proteção aos olhos do tubarão, no estágio final do ataque a uma presa, por sua potencial contrarreação.

No terceiro dia tivemos vários indivíduos alternando as aproximações das gaiolas. No entanto, o ponto alto aconteceu por volta do meio-dia, quando três machos disputavam a área. Dois deles tiveram o típico comportamento (display) de nadar em paralelo na mesma direção, mantendo uma distância segura e medindo-se mutuamente, ao avaliarem-se, comparando seus tamanhos, rapidamente decidem quem é o maior e quem, por isso, tem a dominância. Evitam, assim, uma confrontação que envolveria riscos mútuos de lesões que poderiam reduzir sua capacidade futura para caçar as ágeis presas que compõem sua dieta básica.

Como pudemos perceber, era muito comum os tubarões darem uma passada pelas gaiolas e sumirem no azul. Mas no quarto e último dia um dos machos, com cerca de quatro metros e meio, decidiu dar um show a parte e ficou desfilando seu corpanzil por pelo menos três longos minutos em frente às duas gaiolas da popa. Eu, que estava em uma delas com uma pequena máquina digital, fiz um filme com 2 minutos 45 segundos sem cortes. O animal parecia que estava gostando de ser filmado. Desfilava de um lado para o outro e, ao se virar, passava muito perto das gaiolas.

E a cada passada, eu, com boa parte do corpo para fora da gaiola, teimava em aproximar ao máximo a câmera do majestoso animal. No final do desfile o tubarão-branco partiu para cima do atum amarrado como isca que, ao ser puxado pelo pessoal na embarcação, o pôs em rota de colisão com a gaiola onde eu estava, filmando tudo meio hipnotizado. Quando vi o tubarão crescer na telinha de LCD da câmera só tive tempo de voltar para dentro da gaiola e ver o bicho desviando de mim e batendo sua nadadeira caudal na parte superior da gaiola. Com a adrenalina pulsando, ouvi então, dentro d’água, alguns Uhuuuuuu! E não é mentira de mergulhador não, foi tudo gravado por outro mergulhador que estava na gaiola ao lado.

Ao final do dia, a âncora e as gaiolas foram recolhidas e partimos de volta à Ensenada com gostinho de quero mais. Como o mergulho com os tubarões-tigres na África do Sul, o mergulho com os grandes brancos na ilha de Guadalupe é uma daquelas coisas que se deve fazer pelo menos uma vez na vida. E eu fiz.


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